domingo, 21 de agosto de 2011

A GULA

Quem nunca abusou de doces e salgados, que atire a primeira pedra. Quem nunca exagerou na dose e “meteu o pé na jaca” durante uma festa, que me acuse de mentiroso. Todos nós, em algum momento  abusamos e nos excedemos diante de iguarias. Existem também aqueles mais gulosos, que não se agüentam diante de bombons ou que mergulham em pratos de feijoadas. Porém, essas atitudes são apenas relacionadas ao prazer de comer bem. São momentos de gulodices, sem nenhum prejuízo para a coletividade. A gula propriamente dita vai além da fome estomacal, é algo que transforma uma pessoa num ser perigoso, insatisfeito e capaz de devorar tudo e todos que atravessarem seu caminho. A fome pelo poder transforma homens em máquinas desumanas, onde o semelhante não passa de objeto para a sua satisfação pessoal. Manoel é um caso interessante. Sua relação com a esposa  mostra que além de ser um apreciador de bons pratos, ele também tinha fome de viver, não importando a quem doer. Aos 75 anos, esse brasileiro, filho de portugueses, se gabava da vitalidade que ainda podia exibir. Apesar de  coroa grisalho e com um físico de apreciador de cerveja, fazia sucesso entre as mulheres e também entre os homens, principalmente aqueles que viam no “seu” Manoel um paizão capaz de afagar o ego de rapazes solitários.Conhecido nos bares da zona portuária, faziam festa quando chegava. Bom de piada e dono de uma gargalhada inconfundível, ele ia espalhando alegria. Em torno dele, orbitavam algumas mulatas (suas preferidas) e alguns rapazes, que por suas habilidades podiam contar com a  magnanimidade do Manoel.Casado com uma brasileira, pai de dois filhos, fazia a felicidade dos amigos e a infelicidade da  família. Contava-se à boca pequena que sua esposa já havia brigado com algumas raparigas que conseguiam lhe arrebatar o coração e o dinheiro. Seus filhos cresceram se tornaram homens e perderam-se no mundo. Apenas Dona Vandinha, como era conhecida a esposa de Manoel, continuava firme em suas atividades domésticas e, apesar da idade, ainda sofria com os casos do marido. Freguês assíduo do bar “Bom Pescado”, onde se comia a melhor peixada da região, Manoel alegava que a sua presença constante naquele recinto era justificada também pela falta de habilidade de sua esposa em preparar peixes para as refeições. Como um bom apreciador do que vinha dos mares, constantemente afirmava que era capaz de comer uma sereia inteira, aproveitando até as escamas. Foi num ensolarado domingo do mês de outubro, quando se comemorava mais um aniversário do “Bom Pescado”, que a turma se reuniu para uma cervejada acompanhada de muito pirão, camarão e peixada. Os amigos, as mulheres e os rapazes compareceram, como sempre esparramando alegria, já que tudo iria ser por conta da casa e também do Manoel. Muito samba, muito riso, muita piada e gargalhadas. Suores molhando as roupas e cervejas refrescando as gargantas sensualizavam o ambiente, onde “seu” Manoel reinava absoluto. E era tanta algazarra e alegria  misturando-se com a música que tocava muitos decibéis acima do suportável, que ninguém ouviu a tosse provocada por uma espinha de peixe que se prendeu na garganta do Manoel, sufocando-o mortalmente.Seu rosto foi retirado do prato, sujo de pirão. Dona Vandinha comemorou em sua casa, com amigos e filhos, saboreando uma moqueca de peixe que ela havia preparado.
Do livro – DOIS EM CRISE – Editora AllPrint / 2010 -  Edison Borba

                                                                                




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