terça-feira, 27 de setembro de 2011

O SILÊNCIO DOS INOCENTES

Nordestino, mulato, rosto marcado por anos de trabalho, pele ressecada pelo excesso de sol, o homem vivia em silêncio. Em mais de trinta anos de vida, poucos tiveram o privilégio de ouvir  sua voz. Sons articulados cuidadosamente, quase inaudíveis como se estivesse sempre escolhendo cada  palavra. Ivo era realmente o “homem silêncio”. Andava devagar. Era capaz de ficar horas  sem ser notado. Até a sua respiração era absolutamente cadenciada e sutil com completo controle corporal.
Ivo era capaz de  puxar enxada  por muitas horas, sempre obediente ao senhor dono da propriedade na qual executava sua lida, nunca reclamando de nada. Recebia o que achavam que  devia receber. Fazia o que diziam para ele fazer. Respondia aquilo que queriam que ele respondesse. Pensava? Sim, Ivo pensava. E ninguém sabia o que ele pensava. Sua cabeça era povoada por uma riqueza de pensamentos, idéias, hipóteses, teses e questões que poderiam causar inveja aos mais diplomados doutores.
Em todos os anos de trabalho duro, Ivo elaborou questões que poderiam erradicar com o problema dos sem terra. Ele sabia como distribuir cada pedaço de um terreno. Os agrônomos ficariam surpresos se um dia pudessem ouvir suas opiniões.  Questões sobre plantio, colheita, armazenamento, combate às pragas eram dominadas por Ivo.
Mas nada que se passava em sua mente era de conhecimento de seus companheiros, de sua família e nem de seus patrões. Era considerado por todos um subserviente sem capacidade de questionar o que acontecia ao seu redor.
Foi em um dia de calor e sol forte,  um dia de enxada  e calos nas mãos, mais um dia de obediência total, mais um desses dias que Ivo não sabia a que mês pertencia. Teria sido apenas mais um dia vazio e comum do plantar e esperar, se o capataz não tivesse surgido, do nada. Apareceu   com voz gritada e zangada a exigir mais trabalho.  Ivo, o “homem silêncio”, enxugou o suor da testa com o dorso da sua mão esquerda, levantou a cabeça e deixou sair de sua garganta o  mais forte grito. Era o  urro dos desesperados. O som emitido por Ivo ecoou por todos os cantos. O capataz, homem rude, também forjado pelas bigornas daquela vida, ao ser tomado pela surpresa, também se calou. Ivo,  caminhou lentamente, abrindo passagem entre seus companheiros de lida. Passo a passo, lentamente,  caminhou até o seu opressor. Ali, diante de todos, frente a frente com o capataz, Ivo iniciou um discurso como nunca ninguém tinha ouvido até aquela data. As palavras jorravam de sua boca de forma clara. As frases eram construídas deixando emocionados todos os trabalhadores. Um a um, todos se aproximaram de Ivo, que conseguia traduzir o sentimento de uma população escravizada. Eram palavras de liberdade e democracia. O rosto de Ivo se iluminava deixando aquele povo em estado de êxtase. Ouviu-se um estampido e o silêncio voltou a ocupar todo o campo. O corpo de Ivo estendido no chão calava para sempre os sonhos de todos os que ainda teimavam em acreditar em novos e felizes tempos.
             Do Livro DOIS EM CRISE - Editora All Print / 2010 -  Edison Borba
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